Em
primeiro lugar, eu condeno os atentados do dia do 7 de janeiro.
Apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões,
sou um cara pacífico. A última vez que me envolvi em uma briga foi
aos 13 anos (e apanhei feito um bicho). Não acho que a violência
seja a melhor solução para nada. Um dos meus lemas é a frase de
John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da
humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobramos sinos: é
por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar
um tiro. Ninguém merece. A morte é a sentença final, não permite
que o sujeito evolua, mude. Em momento nenhum, eu quis que os
cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles
evoluíssem, que mudassem.
Após o
atentado, milhares de pessoas se levantaram no mundo todo para
protestar contra os atentados. Eu também fiquei assustado, e
comovido, com isso tudo. Na internet, surgiu o refrão para essas
manifestações: Je Suis Charlie. E aí a coisa começou a me
incomodar.
A Charlie
Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970 e
identificada com a esquerda pós-68. Não vou falar de toda a
trajetória do semanário. Basta dizer que é mais ou menos o que foi
o nosso Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só
foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma bastante
negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês
Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou
seja, a direita européia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome
da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais...
O editor
da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto
em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de
“não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista
Mona Chollet – críticas que foram resolvidas com a saída dela).
Ele ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane
Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o comando dele que a
revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã – ainda
mais após o atentado que a revista sofreu em 2011.
Uma pausa
para o contexto. A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na
maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não
estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é
pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”. Após
os atentados do World Trade Center, a situação piorou. Já ouvi de
pessoas que saíram de um restaurante “com medo de atentado” só
porque um árabe entrou. Lembro de ter lido uma pesquisa feita há
alguns anos (desculpem, não consegui achar a fonte) em que 20
currículos iguais eram distribuídos por empresas francesas. Eles
eram praticamente iguais. A única diferença era o nome dos
candidatos. Dez eram de homens com sobrenomes franceses, ou outros
dez eram de homens com sobrenomes árabes. O currículo do francês
teve mais que o dobro de contatos positivos do que os do candidato
árabe. Isso foi há alguns anos. Antes da Frente Nacional, partido
de ultra-direita de Marine Le Pen, conquistar 24 cadeiras no
parlamento europeu...
De volta
à Charlie Hebdo: Ontém vi Ziraldo chamando os cartunistas mortos de
“heróis”. O Diário do Centro do Mundo (DCM) os chamou de“gigantes do humor politicamente incorreto”. No Twitter, muitos
chamaram de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar
na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie
Hebdo são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato
é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.
O
primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um
princípio que diz que o profeta Maomé não pode ser retratado, de
forma alguma. (Isso gera situações interessantes, como o filme A
Mensagem – Ar Risalah, de 1976 – que conta a história do profeta
sem desrespeitar esse dogma – as soluções encontradas são
geniais!). Esse é um preceito central da crença Islâmica, e
desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um
paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a estátua de
Nossa Senhora para atacar os católicos. O Charlie Hebdo publicou a
seguinte charge:
Qual é o
objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã
esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. Ok, o catolicismo foi
banalizado. Mas isso aconteceu de dentro pra fora. Não nos foi
imposto externamente. Note que ele não está falando em atacar
alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina
islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só.
Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os
valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é
um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas
associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar
a revista. Os tribunais franceses – famosos há mais de um século
pela xenofobia e intolerâmcia (ver Caso Dreyfus) – deram ganho de causa para a
revista. Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse
incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã.
Mas
existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal
retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã
sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre
portando armas ou fazendo alusões à violência (quantos trocadilhos
com “matar” e “explodir”...). Alguns argumentam que o alvo
era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento
que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma
generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que
aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só
o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge
de um negro assaltante e disséssemos que ela não
critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam...
E aí
colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10%
de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de
Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são
corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Se a piada é
preconceituosa, ela transmite o preconceito. Se ela sempre retrata o
árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo
árabe é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se
veste exatamente da mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação
de identificação-projeção é criada mesmo que inconscientemente.
Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a
Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos
franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses
ataques matam pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo
ninguém”, como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega
o ódio que mata pessoas.
No
artigo do Diário do Centro do Mundo, Paulo Nogueira diz: “Existem
dois tipos de humor politicamente incorreto. Um é destemido, porque
enfrenta perigos reais. O outro é covarde, porque pisa nos fracos.
Os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo pertenciam ao
primeiro grupo. Humoristas como Danilo Gentili e derivados estão no
segundo.” Errado. Bater na população islâmica da França é
covarde. É bater no mais fraco.
Uma
das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles
também criticavam católicos e judeus. Isso me lembra o já citado
gênio do humor (sqn) Danilo Gentilli, que dizia ser alvo de racismo
ao ser chamado de Palmito (por ser alto e branco). Isso é canalha.
Em nossa sociedade, ser alto e branco não é visto como ofensa, pelo
contrário. E – mesmo que isso fosse racismo – isso não daria
direito a ele de ser racista com os outros. O fato do Charlie Hebdo
desrespeitar outras religiões não é atenuante, é agravante. Se as
outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas.
Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas
isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não.
Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores
representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de
dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado.
Bastava que a justiça francesa tivesse punido a Charlie Hebdo no
primeiro excesso. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês
não devem passar”.
“Mas
isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é
censura. Um dos significados da palavra “Censura” é repreender.
A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair
simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa,
isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o
ódio e por isso devem ser evitados – como o racismo ou a homofobia
– isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem
que você não pode usar determinado personagem porque ele é
propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda
censura é ruim.
Por
coincidência, um dos assuntos mais comentados do dia 6 de janeiro –
véspera dos atentados – foi a declaração do comediante Renato Aragão à revista Playboy. Ao falar das piadas preconceituosas dos
anos 70 e 80, Didi disse: “Mas, naquela época, essas classes dos
feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam.”.
Errado. Muitos se ofendiam. Eles só não tinham meios de manifestar
o descontentamento. Naquela época, tão cheia de censuras absurdas,
essa seria uma censura positiva. Se alguém tivesse dado esse toque
nOs Trapalhões lá atrás, talvez não teríamos a minha geração
achando normal fazer piada com negros e gays. Perderíamos algumas
risadas? Talvez (duvido, os caras não precisavam disso para serem
engraçados). Mas se esse fosse o preço para se ter uma sociedade
menos racista e homofóbica, eu escolheria sem dó. Renato Aragão parece ter entendido isso.
Deixo
claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não
estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que
deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria
ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É
“Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as
consequências venham na forma de processos judiciais do que de balas
de fuzis.
Voltando
à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são
mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado
vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi
atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que
a guerra foi declarada” (grifo meu). Essa fala mostra exatamente as
raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de
direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população
do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”.
Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade,
é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é
tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião
até... charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos!
Muitos chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas
para homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida.
Quando chegam as notícias de que locais de culto islâmico na França foram atacados – um deles com granadas! - nessa madrugada, a coisa perde
um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia
para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos
ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos” – e
ela sabe disso).
Por isso
tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro de ontem, eu não
sou Charlie. No twitter, um movimento – muito menor do que o
#JeSuisCharlie – começa a surgir. Ele fala do policial, muçulmano,
que morreu defendendo a “liberdade de expressão” para os
cartunistas do Charlie Hebdo ofenderem-no. Ele representa a enorme
maioria da comunidade islâmica, que mesmo sofrendo ataques dos
cartunistas franceses, mesmo sofrendo o ódio diário dos xenófobos
e islamófobos, repudiaram o ataque. Je ne suis pas Charlie. Je suis
Ahmed.