sexta-feira, 28 de maio de 2021

Humano, não-humano, desumano e inumano

As discussões recentes sobre o anúncio do lançamento do guia oficial do Sabá para a 5a edição têm me feito pensar muito no conceito de humanidade e suas diferentes formas de negação que são apresentadas nos diversos materiais de Vampiro: a Máscara ao longo das diferentes edições. Filosofia não é minha área de especialidade, mas tive que estudar um bocado em uma disciplina do doutorado que fiz em 2017 e que tinha um tópico que tratava justamente de formas de pensamento não-humanas. Já se passaram 4 anos (e eu ainda não defendi kkkrying) e tô citando muita coisa de cabeça, mas acho que pode ser legal pra iniciar a discussão e enriquecer as mesas de todo mundo. 

Escrever sobre um ser "alienígena" é um desafio que é discutido na filosofia há séculos. Em seu artigo “Kant in the land of the extraterrestrials”, Peter Szendy resgata a ideia de Kant da limitação da antropologia devido à falta de outra espécie racional para que o homem pudesse se comparar, o “totalmente outro”. Kant então sugere que seria necessário o contraste entre os seres humanos com seres extraterrestres, que representariam uma racionalidade não-terrena. Esses "extraterrestres" não precisam ser entendidos de forma literal. Kant fala de criaturas de Mercúrio e Vênus, mas Vilém Flusser vai buscar seu "alienígena" nas regiões abissais do oceano, ao imaginar como seria o pensamento de uma espécie de molusco chamada vampyroteuthis infernalis, ou "Lula-Vampiro-do-inferno".


No trabalho final da disciplina, defendi que William Golding em "Os Herdeiros" estava descrevendo o pensamento do "outro" ao falar de neandertais. Esse campo de estudos é chamado de "filosoficção", já que usa histórias inventadas para fazer reflexões sobre a natureza humana. Tanto para Flusser quanto para Golding, a forma de racionalidade não-humana está intimamente ligada à sensorialidade desses seres (tem uma passagem fantástica do Flusser sobre como o pensamento humano é vertical, já que nossa movimentação é restrita a isso na maior parte do tempo, enquanto a Lula se movimenta de forma tridimensional. Os neandertais de Golding têm uma espécie de telepatia e descrevem o mundo a partir dos odores, ao invés da visão). Em outras obras, como no filme "A chegada", essa construção do pensamento extraterrestre explora formas alternativas de linguagem. O que mostra a natureza incompreensível do outro é a maneira dele se expressar. 

Dito isso tudo, vamos pensar na Humanidade em Vampiro - a Máscara. Não tenho aqui a primeira edição, mas na segunda edição é descrita de forma super vaga, basicamente como "até onde o seu personagem degenerou para a bestialidade". Embora seja esmiuçada em outras edições, a ideia geral sempre é a mesma: Humanidade é aquilo que evita que o personagem se entregue para a Besta, como deixa claro o V20: "Os mortais normalmente também seguem a Trilha da Humanidade, apesar de o fazerem de forma inconsciente: eles não sabem que podem ser algo mais. Por isso, esse sistema mecânico de moralidade raramente é aplicado a eles. Certamente, alguns mortais — sequestradores, assassinos e outros — têm baixos níveis de Humanidade, mas ao contrário dos Membros, eles não têm nenhuma Besta corroendo seu interior." Assim, podemos entender que A Besta faz o papel de "totalmente outro" em Vampiro, a Máscara. Se para Kant estava em outro planeta, para Flusser no fundo do oceano e para Golding estava no passado, para os autores do World of Darkness essa alteridade está dentro do próprio personagem. Portanto, para entendermos a Humanidade, precisamos entender A Besta.

No V20, a Besta é descrita da seguinte forma:

"Claro, há um lado negativo também. Dentro de cada vampiro se esconde uma criatura, apaixonada faminta que é o oposto do homem. É a besta, e a besta conhece apenas três atividades: Matar, alimentar-se e dormir. É o desejo, agitando todos os Membros e incitando-os a matar a vítima em vez de tomar apenas sangue suficiente." Assim, podemos afirmar que a Besta é a negação da racionalidade, a extrapolação dos instintos básicos. No entanto, a ideia do homem como ser racional em plena consciência é uma construção ocidental humanista, que floresce entre os séculos XVI e XIX. Freud, quando fala das três feridas narcísicas do ser humano coloca a existência de um inconsciente do qual não temos controle. Provoco então: Não seria a Besta não uma negação da natureza humana, mas uma entrega a uma natureza profundamente humana? O próprio jogo não nega essa possibilidade, quando coloca "É possível que vampiros com altos níveis de Humanidade sejam mais humanos do que muitos mortais!". O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando fala do perspectivismo ameríndio e da cultura de alguns povos nativos de nosso continente coloca como ponto importante a não diferenciação entre seres humanos e outras espécies. Quando Guimarães Rosa fala de uma onça como sua parente, ele está entendendo como igual um animal que deseja somente "matar, se alimentar e dormir" (faltou aqui talvez o "reproduzir-se").

Porém, se uma batalha contra a Besta interior pode as vezes parecer algo abstrato demais, o Sabá é apresentado - sobretudo a partir da terceira edição - como o "totalmente outro" externo, já que seria uma seita que "rejeita a Humanidade". No entanto, ao rejeitar a humanidade, a Espada de Caim não sucumbe à Besta, e sim estabelece outros códigos de conduta para controlá-la. E esses códigos de conduta são todos baseados em comportamentos humanos, ou a interpretação humana do comportamento. Mesmo em termos de mecânicas de jogo, o Sabá encontrou outra maneira - bastante criativa - de lidar com A Besta.  O Sabá não é "inumano". Nunca foi. Ele só é humano de uma forma diferente, assim como várias culturas o são ao redor do globo. Entender o Sabá como "alienígena" é comprar a narrativa da Camarilla. Mais do que isso, é embarcar num discurso eurocêntrico iluminista que se pretende universal (e falha vergonhosamente).


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(Postei esse texto no facebook, o que levou a uma resposta de Rô Amadeu, do canal Segredos de Narrador. Para ele, a humanidade seria a moralidade padrão do cenário por uma imposição das pressões sociais. - Não tenho autorização para republicar o texto dele, mas ele pode ser lido aqui. Respondi mais ou menos dessa maneira:

Olá, Ro. Não li seu texto como contraponto ao meu, mas sim como um ponto q não explorei. Entendo seu texto pelo fundamento do jogo, mas acho muito ruim que esse seja o argumento.

Primeiro pq ele parte da premissa filosoficamente fraca de que todo homem tem humanidade, num sentido muito restrito. O V20 traça exceções - "os sequestradores, assassinos e outros" - mas a real é que dentro dos princípios que ele explicita através das mecânicas de jogo, boa parte da humanidade - talvez a maioria - não é humana. (nem vou entrar de novo no ridículo que é a hierarquia de pecados da Humanidade - onde "dano intencional à propriedade" é mais grave do que matar alguém acidentalmente).

E isso está contemplado no primeiro parágrafo do seu texto: ao entender que a humanidade não é uma essência do ser humano, mas fruto da sociedade, pensar na "Humanidade" como padrão é ignorar a diversidade das sociedades humanas. Na prática, cada sociedade impõe a seus indivíduos "trilhas de sabedoria" diferentes.

Além disso, pq ele reforça a ideia de q só existe uma forma de ser "humano", cristã. (aliás, poderíamos discutir mesmo se só existe uma forma de ser cristão, essa forma europeia). Dessa forma, o jogo mais uma vez toma o cristão europeu como "homem universal" (e isso é sinalizado ao longo de todo o cenário. A confirmação da lenda de Caim como "a correta" é extremamente problemática, se pararmos pra pensar).

A real é que - como eu já disse diversas vezes - os autores de Vampiro, a Máscara NÃO se preocuparam com isso. A visão de mundo das trevas de Mark Rein Hagen é simplória. Vampiro não foi escrito pra ser jogado fora dos EUA e da Europa ocidental. Eles podem ser bem intencionados, mas nunca trouxeram a discussão pra esse nível, até pq estão nos lugares confortáveis do capitalismo central e da filosofia antropocêntrica de base clássica européia. Mas isso não é desculpa/motivo para que nós, jogadores da periferia global, aceitemos isso.)